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EL ETERNAUTA: ESBOÇO PARA UMA INTERPRETAÇÃO

  • grupomonizbandeira
  • 13 de mai.
  • 21 min de leitura


Por Miguel Mazzeo
Por Miguel Mazzeo

O historiador argentino Miguel Mazzeo realiza nesse ensaio uma interpretação revolucionária da novela gráfica El Eternauta recentemente adaptada ao Netflix e protagonizada por Ricardo Darin.


Desfazendo as camadas de ideologias da indústria cultural estadunidense, Mazzeo recupera na obra do Montonero e desaparecido político Héctor Germán Oesterheld a figura do herói coletivo em tempos de crise orgânica do capital, exacerbação do fetiche e ameaça a extinção da própria espécie humana.

Miguel Mazzeo Tradução: Juan Fischer


I. No atual contexto histórico O Eternauta aquire novos sentidos e re-atualiza sua chave principal: a chave da resistência. Novela Gráfica (história em quadrinhos, HQ) argentina de ficção científica, O Eternauta é uma obra sobre a resistência à opressão e, portanto, sobre os vínculos humanos solidários, horizontais e democráticos, sobre formas descentralizada de organização e luta coletiva, sobre o misticismo do enfrentamento com o poder que subjuga, sobre a legitimidade axiológica do sujeito resistente, sobre a violência, enfim: sobre a guerra e seus dilemas.O presente cenário de devastação material e mental, a intensificação do processo de desintegração da convivência social e seu resultado: a degradação cultural, por sua vez, realçam diversos aspectos que subjazem em O Eternauta: a antropologia otimista, o tema da ação enquanto ideologia; as perguntas pelo ser social, pelos processos de socialização moral, pelo conformismo, o livre arbítrio, a vontade humana, etérea.Escrita por Héctor Germán Oesterheld, desenhada em uma primeira versão (1957 – 1959) por Francisco Solano Lópes, publicada na revista Hora Cero Semanal (Hora Zero Semanal), O Eternauta é, na realidade, uma “grande história”, repleta, ainda, de sincretismos de diversas representações e de metáforas formidáveis.Anos mais tarde, 1969, a revista Gente publicaria uma segunda versão de O Eternauta, desenhada por Alberto Breccia. Esta re-adaptação se caracteriza por apresentar uma dimensão política menos universal e mais conjuntural que a primeira, com referências ao contexto histórico argentino muito mais diretas. Por exemplo: é perceptível a passagem de resistência a uma ofensiva popular, junto à emergência de vanguardas diversas. No ano de 1969, ocorre o Cordobazo (29 de maio) e se inicia na Argentina um ciclo histórico caracterizado pelo “auge das massas”. Por outro lado, se acentuam os aspectos mais lúgubres da história e se eliminam algumas circunstâncias jocosas que apareciam na primeira versão. As referências geopolíticas são mais claras: as grandes superpotências que haviam repartido o mundo decidem “entregar” a América do Sul aos invasores. Também aparecem novos personagens como Suzana, que substitui Pablo, o pré-adolescente que havia sido encontrado por Juan Salvo no sótão da loja de ferragens. A presença de Suzana, uma mulher bela, se apresenta como disruptiva, dado que atrai a vários personagens masculinos (especialmente ao professor de física Favalli) o que gera algumas tensões. Nessa representação da mulher como possível fator de dissolução, podemos perceber os preconceitos patriarcais típicos das teorias convencionais (“clássicas”) da guerra.


Por sua vez, Breccia, diferente de Solano Lopez, propunha uma narrativa visual muito mais complexa, experimental, sombría, repleta de recursos expressivos que iam desde o feímos poético ao traço inacabado. O acolhimento por parte das leitoras e leitores desta versão não foi muito boa. Em primeiro lugar, pela diminuição da dimensão universal e pelo afastamento da austeridade visual (mais afinada com o texto) da versão original. Além disso, um dado importante: foi publicada na Gente, um meio que, devido à sua orientação ideológica e ao perfil de seu público, não era a mais conveniente para O Eternauta.No intervalo entre as duas versões de O Eternauta e após a segunda, Oesterheld criou diversos materiais relacionados. Em 1961, lançou uma revista chamada, justamente, O Eternauta. Desde 1962, junto a outras histórias de ficção científica, publicou um conto, ou melhor: uma “tentativa de romance” que nunca se concretizou e que retomava a história de Juan Salvo/O Eternauta, “o viajante do tempo”. O relato começa em El Tigre, continua em Nova York e depois segue para o espaço exterior. Em seguida, escreve A Guerra dos Antártes (uma versão de 1970 e outra de 1974) com desenhos de León Napo e Gustavo Trigo.Houve uma “segunda parte” de O Eternauta (O Eternauta II) publicada em 1976 pela revista Skorpio, novamente com os desenhos de Solano López. Nessa versão, a narrativa apresenta perfis mais “doutrinários” e os aspectos especificamente militares da luta estão acentuados. A guerra é levada à cabo exclusivamente por jovens. As referências ao contexto histórico argentino agora são explícitas. Também existe uma “terceira parte”, sem o roteiro de Oesterheld e sem os desenhos de Solano López nem de Breccia. Sua publicação se iniciou em 1983. Foi escrita por Alberto Ongaro e contou com os desenhos de Mario Morhain, Carlos Meglia e Oswald. Mas as sequências de O Eternauta não se esgotaram por aí.

A página Blog de Comics descreve o caminho posterior de O Eternauta: “Em 1997, Solano López retomou a história com Pablo Maiztegui em ‘O Eternauta: O Mundo Arrependido’. Entre 1999 e 2000, foi publicada ‘Ódio Cósmico’ com roteiros de Ricardo Barreiro e Pablo Muñoz e desenhos de Walter Taborda e Gabriel Rearte. Finalmente, a partir de 2003, Maiztegui e Solano López continuaram a série com ‘O Regresso’, ‘A Busca de Elena’ e ‘O Fim do Mundo’…”.[1]


II. O consenso é unânime: a primeira versão é a mais bem-sucedida. Estamos de acordo. Seu enfoque crítico sobre os diversos temas e situações é mais rico e mais profundo, embora, paradoxalmente, o compromisso político seja mais contundente na reinterpretação de 1969 e, sobretudo, na segunda parte de 1976. Na primeira versão, condensa-se toda a potência icônica e cultural de O Eternauta. O caráter universal dessa potência, em boa medida, explica sua atualidade (e a periodicidade de seus retornos e transfigurações), sua recepção favorável em diversos países da Nossa América e da Europa, e sua recepção desfavorável nos Estados Unidos. O Eternauta foi rejeitado por Hollywood em 1983, quando o diretor de cinema argentino Adolfo Aristarain apresentou um projeto. Mas ao longo dos anos, a lista de realizadores nacionais e internacionais que pensaram em adaptações de O Eternauta não fez senão crescer.

A escrita da primeira versão de O Eternauta coincide com os anos de Resistência Peronista contra a Revolução Libertadora (fuziladora). É irrebatível a dialética entre a vida social e a vida anímica. É evidente o sentido da invasão narrada em O Eternauta. E devemos considerar sua historicidade. Relatos apocalípticos, e O Eternauta é um deles, proliferaram em épocas de perseguições, desde São João, o evangelista, até os dias atuais. Por outro lado, Auschwitz, Hiroshima, Nagasaki e o espanto maquinal da Segunda Guerra Mundial estavam muito próximos.

Como interpretar a presença de extraterrestres em Buenos Aires entre 1957 e 1959? Mais do que uma “invasão comunista” (certamente, o contexto da Guerra Fria favorecia esse tipo de abordagem), sustentamos que pesa mais uma condição interna, os antagonismos estruturais não resolvidos de nossa sociedade, uma precariedade especificamente argentina: a presença em nossa sociedade de setores que se sentem alheios à comunidade nacional e que, portanto, se comportam como agentes externos e predadores. Devemos lembrar que ainda faltavam vinte anos para o grande genocídio da história contemporânea argentina: para os centros clandestinos de detenção, a prática sistemática da tortura, a apropriação de menores, os sequestros e os desaparecimentos forçados, a matança de prisioneiros indefesos, etc. O Eternauta também contém elementos proféticos.

Leituras mais recentes de O Eternauta colocaram foco no COVID-19 e na pandemia. Claro, são válidas as novas chaves interpretativas; de fato, aqui estamos propondo uma. Mas acreditamos que o caos, o vazio e a desolação que nos ameaçam não provêm de lá, pelo menos não diretamente. Sem dúvida, pode-se ler O Eternauta através de qualquer catástrofe: econômica, nuclear, sanitária, climática, ecológica, etc. Insistimos em lê-lo à luz das catástrofes especificamente argentinas.

Mais do que por alguma neurose ou obsessão da sociedade argentina, O Eternauta é uma obra atravessada pela indignação frente à crueldade das classes dominantes argentinas (e seus agentes cívico-militares), perpetradores de grandes massacres nacionais: os bombardeios na Praça de Maio em 16 de junho de 1955 e, um ano depois, os fuzilamentos de José León Suárez, para mencionar apenas os que foram contemporâneos à escrita da primeira versão de O Eternauta. Também está presente em O Eternauta o repúdio à cumplicidade e à indiferença frente a esses massacres, em especial, das classes médias.

A visão horizontal dos mortos, a perspectiva “nivelada ao chão” em O Eternauta, não apenas nos propõe uma visão que toma partido das vencidas e vencidos, se não que ainda nos transporta para algumas imagens da Praça de Maio bombardeada em 1955.

Oesterheld, que naquela época era um burguês liberal “bem-pensante” e “bem-comportado”, entrou em contato com a encarnação do mal de maneira particular e concreta: o mal que acontecia bem diante de seus olhos. E como sabia distinguir entre algozes e vítimas, como não estava disposto a acatar qualquer autoridade, como respeitava o próximo e era capaz de se colocar no lugar dele, não pôde permanecer indiferente. Assim, sua fascinação por Robinson Crusoe se transformou em um interesse pelas relações reais das quais depende a verdadeira riqueza do indivíduo.

Como faremos para restituir a capacidade subjetiva de distinguir entre algozes e vítimas, o repúdio visceral à autoridade ilegítima e o prestígio da noção de próximo? Só sabemos que essa restituição é um ponto de partida inevitável para qualquer política libertadora/emancipadora, para todo projeto orientado à construção de uma nação soberana e uma sociedade autorregulada.

III.


Oesterheld dizia que: “o verdadeiro herói de El Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Reflete assim, embora sem intenção prévia, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói 'em grupo', nunca o herói individual, o herói solo…” [2]. Sabemos bem que, como representação do herói coletivo, a figura de Juan Salvo/o Eternauta constitui o contraponto ao super-herói, especialmente ao modelo ianque de super-herói: burguês, imperialista, industrial, histérico, paranoico. Um e outro correspondem a sistemas de categorias e significados opostos.

O super-herói vive em pânico diante da anomia social, não consegue conceber uma ordem diferente da instituída pelo poder. O herói coletivo, embora tema a anomia, não deixa de confiar na capacidade instituidora das pessoas, prefere assumir o risco e aposta nisso. O primeiro inspira medo por sua brutalidade, o segundo inspira respeito por sua consciência.

Juan Salvo/o Eternauta não aspira ao poder individual, nem à conquista subjetivista do universo: ele quer sobreviver para viver uma vida digna. Não se destaca por sua operacionalidade tecnológica: improvisa o tempo todo. É artesanal. Até seu traje é um “anti-traje”, suas características se contrapõem às do traje do super-herói: feio, malfeito, é totalmente contrário à estética. Juan Salvo/o Eternauta sabe muito bem que as máquinas não produzem significados.

Em El Eternauta, nenhum objeto externo confere poderes aos seres humanos. As armas humanas são o raciocínio e a compaixão e, de modo geral, a força subjetiva que tende à associação e à cooperação. As iniciativas individuais, que não faltam na narrativa, estão sempre a serviço do coletivo e exigem sacrifícios e implicam grandes riscos. É o caso de Alberto Franco, o jovem fundidor (ou torneiro). Não podemos evitar identificar afinidades entre o herói coletivo e alguns dos traços mais marcantes do poder popular. Mas Juan Salvo/o Eternauta também se diferencia das figuras heroicas típicas do individualismo romântico. Sem dúvida, compartilha com o herói trágico aspectos ligados à concentração do ético.

Como nele estão dialeticamente conectadas a consciência e a prática, os dois polos da práxis, Juan Salvo/o Eternauta não tem dupla personalidade. Tem uma só e não projeta suas fantasias fora do cotidiano. Um de seus traços distintivos é a autenticidade. Nele, o cotidiano e o excepcional (neste caso o fantástico) não estão divididos. O excepcional, concebido como “o superior”, acontece dentro do mundo do habitual. Mas, além disso, Juan Salvo/El Eternauta é o contraposto do individualismo e do narcisismo, apesar de atuar em um quadro de uma situação de perigo e incerteza. É um homem harmônico e humano, capaz de superar o instintivo. Não encontra nem busca a autossatisfação no desespero. Pode comunicar as pessoas ao seu redor suas vivências mais profundas. Eis alguns dos muitos aspectos que fazem de Juan Salvo/o Eternauta uma figura contracultural. Acreditamos que essa condição, hoje mais do que nunca, merece ser ressaltada.

Juan Salvo/o Eternauta é, principalmente, uma personagem ético-política. É um homem livre e autônomo que chega à margem da autocompreensão e não quer sentir vergonha de ser humano. Está socializado e orientado no mundo. Possui um ethos. As situações excepcionais que precisa enfrentar evidenciam a consciência moral de um homem comprometido com seus semelhantes, um homem com um senso de responsabilidade marcante. Essa consciência e esse senso são os que lhe permitem evitar o colapso mental nas situações mais adversas, quando tudo ameaça ruir, quando nada é certo.

Há um componente sartreano em El Eternauta: a liberdade aparece sempre como a escolha de lutar, enquanto o desespero se apresenta como a incapacidade de lutar. (Georg Lukács dizia: “O desespero generalizado empurrou as pessoas para o campo da reação” [3]).

IV.


O Eternauta é um homem de carne e osso, é Juan Salvo, claro. E é sempre o inimigo quem exibe superpoderes dos quais ele, simples ser humano, carece. Trata-se, por outro lado, de um inimigo com muitos rostos, mas com um essencial que é desconhecido e que se mantém ao longo do relato como uma espécie de ápeiron ameaçador e irracional; ou como um “significante vazio” (do obscuro), para dizê-lo com uma terminologia um tanto desgastada. É um poder que se oculta para se apresentar como exigência natural ou razão. Igual ao capital. É um poder que não se disfarça porque não tem nenhuma intenção de se tornar tolerável, só quer destruir. Igual ao capital. Estamos frente a um inimigo que não aceita regras ou códigos, não negocia. Seu horizonte não é outro além do massacre. Um inimigo que se manifesta através de seus agentes e vanguardas: máquinas, insetos monstruosos, autômatos ou humanoides mutilados.

Do fundo de sua condição vulnerável, da carência mais absoluta de meios, Juan Salvo/o Eternauta enfrenta um poder imenso que, além disso, tem a capacidade de aumentar constantemente seus recursos e artimanhas, de “se atualizar”.

A psicologia latino-americana da libertação ensina que o fatalismo é a ideologia do oprimido. Não há fatalismo em Juan Salvo/o Eternauta. E como não há fatalismo, não há alienação da consciência. Não há mistificação do inimigo e está presente a necessidade de conhecê-lo como condição para derrotá-lo. Não há isolamento individualista. Não há uma racionalidade que promova a adaptação a um destino inevitável. Não há transformação da ordem histórica em ordem natural. Não há “salve-se quem puder” nem “o homem como lobo do homem”, porque algumas das circunstâncias típicas da sociedade capitalista não são naturalizadas. Sobretudo: não há passividade nem dissolução política! Não há espaço para fatalismo, mesmo que monstros de outro planeta invadam Buenos Aires e a Grande Buenos Aires.

Nosso país e este tempo nos impõem essa chave interpretativa — é impossível ignorá-la. Não se pode evitar as leituras políticas de El Eternauta. Ninguém pode subtrair-se às relações entre os universos simbólicos e as estruturas sociais.

Juan Salvo/o Eternauta, um homem sem agressividade contida, vai à guerra e se torna soldado por um senso de dignidade. Tem plena consciência de que deve assumir todos os riscos diante da possibilidade de que o mal absoluto triunfe. Juan Salvo/o Eternauta é um homem comum, claro, mas o comum nele não pode ser associado aos aspectos passivos e acríticos, às figuras crédulas que servem de base social para os regimes do egoísmo e da violência. Por isso é possível uma épica do homem comum, por isso Juan Salvo/o Eternauta pode converter-se em herói. Porque o “ser-comum” não se manifesta nele como simples adaptação à lógica do mercado, como pura interiorização da ideologia das classes dominantes.

De fato, Juan Salvo/o Eternauta trava uma “guerra necessária”, mas o que o move é o “coragem civil”. Um dos personagens do romance Megafón o la guerra, de Leopoldo Marechal, publicado em 1970, definia a coragem civil como “uma coragem sem pavio (...). Na ofensiva e na defensiva, só usa ou a inteligência ou a imaginação ou a sensibilidade, porque deve enfrentar as contingências da batalha de peito aberto”. [4] Por isso, no tipo de guerra travada em Megafón o la guerra e em El Eternauta, os exércitos formais e institucionalizados não servem muito. Servem mais a poesia do metafísico Samuel Tesler e a paixão heurística do historiador Ruperto Mosca, a inteligência da dupla Barrantes/Barroso e do Físico Favalli; a valentia do piloto Coraggio e do torneiro Franco, as lideranças austeras e discretas de Megafón e Salvo.

Como Megafón o la guerra, El Eternauta contém, nas entrelinhas, toda uma teoria da guerra. Da guerra em condições de absoluta assimetria, da guerra defensiva feita por pessoas comuns decididas a não se deixarem esmagar (aniquilar) pela arbitrariedade dos opressores-invasores. De uma guerra “merecida” por um povo quando se apresenta como a única opção frente ao massacre, direto ou indireto, mas sempre unidirecional, urdida por um poder despótico, impiedoso, desumano. É possível evitar a violência ao custo da humilhação permanente, da degradação e da negação do próprio ser? A única violência necessária é a violência inevitável. El Eternauta é inconcebível sem o rifle de Salvo e seu simbolismo. Em Megafón o la guerra e em El Eternauta fermentam concepções de guerra que poderiam ser pensadas como antagônicas às de Carl von Clausewitz e muito mais próximas às de Sun Tzu. Concepções de uma guerra menos convencional do que a chamada guerra não convencional.

El Eternauta expressa um “momento conservador”, dado que, ao lutar pela sobrevivência, Juan Salvo/o Eternauta busca preservar o ser — dito nos termos de Baruch Spinoza em sua Ética.[5] Mas esse momento conservador é fundamental, pois sem ele seria impossível imaginar um momento utópico. Esse momento conservador nos mostra pessoas com uma imensa capacidade de se comunicar, de se doar e de se entregar. El Eternauta propõe um momento especificamente utópico ou o momento conservador aparece isolado? Essa é outra discussão. Mas os fundamentos de um “poder-ser” estão presentes no momento conservador.


V.


A série baseada em El Eternauta, lançada pela plataforma Netflix em 30 de abril, retoma um “grande relato” em uma época caracterizada, ou pela rejeição aberta aos grandes relatos, ou pela incapacidade de construir um que destaque as vantagens da solidariedade, da organização e da luta popular quando se trata de enfrentar sistemas opressivos. Retoma, em contracorrente, uma dimensão produtiva e histórica.

A série foi filmada inteiramente em Buenos Aires (CABA e Grande Buenos Aires) e conta com seis episódios. Dirigida por Bruno Stagnaro, com Ricardo Darín como protagonista central, conta com um elenco que inclui: Claudio Martínez del Bel (“o russo” Polsky), Carla Peterson (Elena), Andrea Pietra (Ana), César Troncoso (Alfredo “o tano” Favalli), Ariel Staltari (Omar) e Marcelo Subiotto (Lucas Herbert), entre outras e outros. Martín Oesterheld, neto do autor, acompanhou o projeto desde o início e atuou como consultor da produção em diversos aspectos. A história termina de forma inconclusiva e uma segunda temporada é aguardada.

O Eternauta da série é deste tempo. E achamos que é justo que seja assim, pois oferece uma interpretação marcada pela historicidade presente e nos propõe um exercício estético, cultural e político muito mais valioso do que qualquer tentativa de reprodução de El Eternauta nas versões de 1957–1959, 1969 ou 1976. Não nos ocorre melhor forma de demonstrar a atualidade de El Eternauta. A série, então, vem enriquecer o grande relato e o grande mito nacional. Seu mérito é imenso.

Stagnaro, junto com outros responsáveis pelo roteiro — Gabriel Stagnaro, María Alicia Garcías, Martín Wain e Staltari —, propõe um jogo onde se combinam referências à versão original com elementos totalmente novos, criativos, impactantes, que buscam dar continuidade à saga. Algo que, como já mencionamos, não é novo, já que vários autores e desenhistas (inclusive Solano López) apostaram em prolongar El Eternauta, entre outras coisas porque isso é um mandato inerente à obra.

Na série, as referências históricas mais diretas remetem a acontecimentos posteriores a 1977, ano do desaparecimento de Oesterheld, e incluem outros bem mais recentes: as sequelas da última ditadura militar, a Guerra das Malvinas, a crise de 2001, os dias 19 e 20 de dezembro daquele ano, o medo dos saques e o pânico diante da anomia, que sempre acaba sendo superado pela sociabilidade das classes populares. De certa forma, a série remete a esses massacres, somando-os aos de junho de 1955 e junho de 1956.

Um dos principais acertos da série é replicar aspectos marcantes da versão original. Como na HQ, a cidade é protagonista e muitos lugares são facilmente reconhecíveis por quem os percorre com alguma frequência. A série consegue recriar a mesma atmosfera sufocante da HQ, a mesma sensação de angústia dos sobreviventes em uma cidade que foi invadida e arrasada por seres aberrantes. Além disso, os lugares são praticamente os mesmos da HQ, setenta anos depois.

Claro, agora os cenários pertencem à cidade neoliberal (protofascista?), à metrópole caótica com sua parafernália tecnológica, tão distinta daquela de 1957–1959, 1969 ou 1976. Com seus imensos shoppings, seus mercadinhos chineses, suas largas autoestradas, suas paradas de Metrobús. Uma cidade abarrotada de veículos particulares, visualmente poluída (e não apenas pela nevasca mortal).

O trabalho tornou-se informal e precário. A figura da “rapi” (delivery) venezuelana — mulher, jovem, precarizada, pobre e migrante — é bastante ilustrativa. Proliferam os sinais de uma sociedade mais diversa do que a de 1957–1959: desde a “versão” oriental de Pablo (descendente de chineses) até a presença e protagonismo das mulheres (algo que contrasta com a primeira versão, onde as mulheres tinham papéis secundários e típicos de uma sociedade patriarcal). Mas também se evidencia um grau de fragmentação social muito maior do que o da velha sociedade industrial, confiante nas promessas da modernidade e do desenvolvimentismo.

Um dado significativo: na série não aparece Franco, nem uma figura equivalente. Referimo-nos ao operário torneiro, jovem, inteligente, valente, capaz de tomar uma iniciativa atrás da outra, braço direito de Salvo na primeira versão de El Eternauta e um dos protagonistas centrais junto com Favalli. Talvez porque a “espécie” de Franco tenha se extinguido, ou porque a síntese que sua figura condensava já não existe, ou, no melhor dos casos, porque suas virtudes estão hoje dispersas numa pluralidade de sujeitos. Na série, parece que a juventude foi precarizada. Talvez por isso o destaque de personagens de meia-idade? São essas mulheres e esses homens com mais idade os únicos que têm alguma profissão, alguma segurança, alguma certeza. Constituem, além disso, a uma geração “analógica” e “pré-digital”, capaz de se mover em um contexto de colapso tecnológico generalizado.

Na série, Juan Salvo/o Eternauta/Darín é um ex-combatente das Malvinas, que participou da Batalha do Monte Longdon em 11 e 12 de junho de 1982, na qual as tropas britânicas venceram as argentinas. Recordemos: foi uma das batalhas mais importantes da guerra, com combates corpo a corpo com baionetas, extremamente sangrentos e até fora do comum para uma “guerra moderna”. Com a escalada da invasão extraterrestre, as memórias dessa batalha atormentarão Juan Salvo/o Eternauta/Darín. Se atermos ao sentido de continuidade inerente a uma obra como El Eternauta, é lógico que o novo Juan Salvo tenha experiência militar. Não há nada de forçado nisso. Muito pelo contrário.

Sem dúvidas, há aspectos da linha narrativa da série que podem causar incômodo aos “hermeneutas” mais fiéis da HQ clássica, especialmente àqueles com uma predisposição mais conservadora. Por exemplo: a presença de vários personagens ausentes na versão original ou com perfis modificados, um Salvo que tem praticamente o dobro da idade do Salvo original, etc. Consideramos que são aspectos menores, alguns inclusive totalmente justificados pelo esforço de dar continuidade à saga de Juan Salvo/o Eternauta, e de dotá-la de historicidade e verossimilhança.

Consideramos que a adaptação ao novo formato não compromete o conteúdo essencial da HQ clássica argentina. O único elemento que marca uma diferença substancial é a ausência da figura do testemunho. Esse lugar é chave, pois é ele que impulsiona o compromisso para evitar o horror. Teremos de esperar a segunda temporada para saber se esse lugar será preenchido ou deixado vazio.

Fora isso, há continuidade na cosmovisão geral e na postura estética. A atitude dos protagonistas da série El Eternauta diante do outro e de si mesmos é praticamente a mesma da HQ. De forma sutil, estão presentes, de maneira sincrônica e diacrônica, os antagonismos estruturais de nossa sociedade, a ferida oligárquico-burguesa que atravessa nossa história e chega até os dias de hoje, a crueldade das classes dominantes argentinas responsáveis pelos grandes massacres nacionais, a cumplicidade e a indiferença das classes médias, etc. Por fim, o caráter “agonístico” de Juan Salvo/El Eternauta não mudou em nada: ele vive lutando. E a guerra que deve travar não se fundamenta em nenhuma “natureza humana”, em nenhum “instinto atávico”.


VI.


Muito (e muito bom!) já foi escrito sobre El Eternauta.[6] Da mesma forma, muito se escreveu e se disse sobre a relação entre Juan Salvo/o Eternauta e Oesterheld, entre a HQ e a história. A ficção, ao criar um universo simbólico de tamanha riqueza, acabou por produzir uma realidade. O que poderia Oesterheld fazer com a história que Juan Salvo/o Eternauta lhe havia contado? Acaso ela não continha a “delegação” de uma tarefa, de uma função? Oesterheld se tornaria o continuador do feito de Juan Salvo/o Eternauta. Retomaria a narrativa onde este a abandonou, onde este ficou sem palavras. O lugar de narrador e testemunha da história, assumido por Oesterheld, gerou-lhe um compromisso histórico do qual não pôde escapar. (Quando a alma subjetiva produtora se coloca no lugar do narrador e do testemunho, o produto cultural tem menos chances de se autonomizar).

Com mais de cinquenta anos de idade, esse roteirista de HQs tornou-se militante da organização Montoneros, na qual desempenhou funções na área de imprensa. Aliás, enquanto escrevia a segunda parte de El Eternauta, em 1976, estava na clandestinidade. Como disse Juan Sasturain: “o receptor da história se transforma em coprotagonista, se dissolve em sua criação”.[7] Oesterheld foi detido e desaparecido em 1977, durante a última ditadura militar (1976–1983), assim como suas quatro filhas [8] e três de seus respectivos companheiros. Duas de suas filhas estavam grávidas, e dois de seus netos foram apropriados. Sua escolha de vida buscou confirmar o sentido de sua obra. Esse aspecto restringe o campo das interpretações, descartando aquelas que são ingênuas, consensualistas, pacificadoras e despolitizadas. A tragédia da família Oesterheld condensa toda a tragédia argentina.

Em sentido estrito, além de Oesterheld, houve várias pessoas que souberam encarnar a heroicidade coletiva e continuaram o feito de Juan Salvo/o Eternauta. Um exemplo entre muitos: Rodolfo Walsh, enfrentando as metralhadoras do Grupo de Tarefas da Marinha com uma modesta pistola calibre 22, para terminar crivado de balas num combate desproporcional, numa esquina de Buenos Aires. Por outro lado, a pedagogia do terror aplicada pelos invasores em El Eternauta não deixou de ter paralelos na história nacional, como no caso do Massacre de Trelew, em 22 de agosto de 1972 — antecedente direto do terrorismo de Estado implementado pela Triple A e pela última ditadura militar.

É claro que muitos e muitas mais se situam nessa linha de continuidade entre Juan Salvo/o Eternauta/Oesterheld. Quantas histórias de vida e luta dos 30 mil se inscrevem em suas coordenadas principais? Muitas, sem dúvida. Também estão aí Teresa Rodríguez; Claudio “Pocho” Lepratti e os assassinados no massacre dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001; Darío Santillán; Maxi Kosteki; Mariano Ferreyra; Santiago Maldonado, entre outros.

Por ora, em uma entrevista concedida a Alicia García de Francisco para o Infobae, Darín, refletindo sobre El Eternauta, afirmou que “o mundo está atualmente numa situação muito estranha, onde há forças extremas”.[9] Sobrevoa certa fragilidade subjetiva nesse comentário. Além disso: qual seria a “outra” força extrema? Ninguém está pedindo que Darín continue qualquer façanha. Seria absurdo e injusto fazê-lo. Mas o fato é que ele encarnou um personagem com uma carga simbólica poderosa demais para ser banalizado com tanta tibieza. Como aconteceu com Oesterheld, aceitar El Eternauta sempre exige algum grau de envolvimento. De fato, nesta hora sombria para a cultura argentina, espera-se um pouco mais de firmeza por parte do ator símbolo do cinema nacional. Sabemos que o diretor, boa parte do elenco e da equipe técnica costumam estar à altura dessa exigência.

Só se pode esvaziar El Eternauta ao desfigurá-lo. Reformulando-o de tal forma que se elimine a carga trágica da nossa história. Delineando uma memória da tragédia que ratifique seu pertencimento exclusivo ao passado e que oculte a plena e absoluta vigência dos antagonismos sociais fundamentais que a desencadeiam. Ignorando o fato de que Juan Salvo/o Eternauta sobreviveu em desvantagem. Tirando-lhe o fuzil. Não existem, nem podem existir, heróis “burocráticos”. A épica baseada na gestão pública carece de qualquer solidez. A série da Netflix esvazia a obra original de Oesterheld-Solano López-Breccia? Afirmamos que não.


VII.


Talvez essas parcelas da sociedade argentina que foram vencidas pelo egoísmo, pelo estupor paralisante, pelo desespero e/ou pelo medo possam captar o sentido da concepção de mundo proposta por El Eternauta. Oxalá consigam perceber um pouco do que há de mais profundo em sua mensagem. As pessoas não estão condenadas a sofrer sozinhas, a condição de vítimas não é uma fatalidade, mesmo considerando o poder desproporcional dos algozes. Uma atitude ética, um gesto solidário, uma ação responsável, algum grau de consciência moral, tudo isso altera a correlação de forças e basta para demonstrar que a morte e a solidão não têm a última palavra. Existem diferentes formas de habitar contextos onde vigora a lei da selva. Formas baseadas em sua recusa e no repúdio de seu caráter aberrante. Modos que se opõem à coerção sistêmica que nos afasta do próximo. Não temos que ser, necessariamente, predadores ou presas. Podemos ser outra coisa. Podemos ser um coletivo humano auto-organizado e fortemente coeso pelo conhecimento, pela amizade e pela empatia, em suma: pessoas unidas por laços emocionais profundos.

A guerra horizontal, com suas sequelas autodestrutivas, não é a única alternativa diante da anomia provocada pelo colapso da ordem vertical. Sempre existe a possibilidade da auto-organização e do autogoverno das vítimas. Ao tomarem seu destino nas próprias mãos, essas vítimas deixarão de sê-lo e, inevitavelmente, serão levadas a travar algum tipo de guerra contra o poder opressor. Isso é algo que dificilmente passaria pela cabeça do super-herói ianque.

Diante do avanço de imaginários antissociais, talvez mais perigosos e letais que a "neve fosforescente"; diante do sucesso das interpelações reacionárias e das formas de interiorização da dominação social (novas “glândulas do medo”); diante de homens e mulheres que perderam a capacidade de se perguntar sobre a situação em que se encontram; diante de uma ordem arbitrária e cruel sustentada principalmente pela ignorância, pela indiferença e/ou pela irresponsabilidade de quem a sofre; diante do desejo de dominar os mais fracos; diante das novas e sofisticadas manifestações dos Cascarudos, dos Gurbos, dos Homens-Robôs de olhos vazios e dos “Mãos” (os Eles, os senhores invisíveis, os “representantes do ódio universal”, os mesmos de sempre, ocultos por diversos fetiches: da mercadoria, do poder); diante dessa nova invasão de “subjugados” que nos oprime, Juan Salvo/El Eternauta eleva ainda mais seu prestígio como emblema da resistência à opressão e como ícone da dignidade humana.

Juan Sasturain traçava um paralelo entre o Martín Fierro de José Hernández e El Eternauta. Via nessas duas obras emblemáticas e atípicas “relatos concebidos nos limites do sistema literário de seu tempo, marginais em relação ao que era reconhecido, diferentes na forma que adotaram ou escolheram e na maneira como circularam e foram consumidos”.[10] De fato, El Eternauta ocupa um lugar fundamental na épica nacional, sendo uma espécie de Martín Fierro do século XX argentino.

El Eternauta forma e continuará a formar parte da memória deste povo. Será constantemente reinterpretado, especialmente pelas novas gerações que, com as mais variadas armas e métodos, se opuserem à naturalização do que é aberrante e abrirem novos caminhos para a razão.

El Eternauta é uma obra-chave do patrimônio cultural nacional que nos recorda que jamais é inútil um ato de resistência, que há práticas que, em sua aparente pequenez, contêm toda a grandeza do mundo (são viveiros de libertação/emancipação) e que a luta coletiva contra a opressão nos humaniza.



[1] Ver: “El Eternauta: a série da Netflix que revive um clássico da ficção científica”: Em: https://blogdecomics.com/el-eternaquta-la-serie-de-netflix-que-revive-un-clásico-de-la-ciencia-ficción/ Verificado em 1º de maio de 2025.

[2] Oesterheld, Héctor Germán e Solano López, Francisco, El Eternauta, Barcelona, La Biblioteca Argentina, Série Clássicos, 2000, p. 13. [Coleção dirigida por Ricardo Piglia e Osvaldo Tcherkaski]

[3] Lukács, Georg, O assalto à razão. A trajetória do irracionalismo de Schelling a Hitler, México, FCE, 1959, p. 658.

[4] Marechal, Leopoldo, Megafón ou a guerra, Buenos Aires, Sudamericana, 1988, p. 56.

[5] Spinoza, Baruch, Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, Madri, Trotta, 2000.

[6] Vale destacar, entre muitos outros, as contribuições de Juan Sasturain, Carlos Trillo e Guillermo Saccomano, Mariano Chinelli, Tomás Bergero Trpin, Jorge Claudio Morhain, Laura Vázquez, Hugo Montero, Enrique Carpintero, Pablo Campana, Daniel Del Percio, Iván Galvani, Benjamín Fraser e Claudia Méndez. Merecem menção especial as teses de doutorado de Laura Fernández e Sebastián Gago, e o trabalho de Fernanda Nicolini e Alicia Beltrami, centrado especificamente em Oesterheld e sua família. Também contamos com os documentários H.G.O, de Víctor Bailo e Daniel Stefanelli, A mulher de El Eternauta, de Adán Aliaga, os documentários do Canal Encuentro e o programa Germán, últimas vinhetas, de Luciano Sarracín.

[7] Sasturain, Juan: “Prólogo”. Em: Oesterheld, Héctor G. e Solano López, El Eternauta, op. cit., p. 9.

[8] O corpo de uma das filhas foi recuperado por sua mãe, Elsa Sánchez de Oesterheld.

[9] García de Francisco, Alicia: “Ricardo Darín: ‘El Eternauta é ficção científica, mas pode ser associada ao estranho mundo atual’”. Em: Infobae, Buenos Aires, 22 de abril de 2025. Disponível em: https://www.infobae.com

[10] Sasturain, Juan: “Prólogo”. Em: Oesterheld, Héctor G. e Solano López, El Eternauta, op. cit., p. 5.


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