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Theotonio dos Santos: Lições sobre o Chile. Podemos vencer!

  • grupomonizbandeira
  • 13 de set. de 2023
  • 7 min de leitura

Dando continuidade a nossa série de artigos,polêmicas e depoimentos de renomados pensadores e personagens da história latino-americana sobre os 50 anos do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile publicamos a tradução de um trecho de "Bendita Crisis" de Theotonio dos Santos.

A publicação ademais é uma homenagem ao autor, como um dos mais renomados pensadores sociais brasileiros e do marxismo mundial desde o fim da II Guerra Mundial, e que justamente no Chile (antes do golpe) quando trabalhava no Centro de Estudos Socio-Economicos (CESO) elaborou ao lado de Vania Bambirra as linhas fundacionais da teoria marxista da dependência.

Como prefácio ao texto uma carta de Theotonio ao Comandante Chávez.


Tradução de Daniel Cruz Costa (Núcleo GIS, PPGH-UNIRIO e CHDD-Itamaraty), texto extraído de BRUCKMANN, Mónica e SEGRERA, Francisco López (orgs.) , "Theotonio dos Santos. Construir soberanía : una interpretación económica de y para América Latina, Antología Esencial. Volumen II", Buenos Aires: CLACSO, 2020.


Carta aberta ao presidente Hugo Chávez

Meu caro comandante:

Gostaria de cumprimentá-lo pela vitória no plebiscito que permitiu reeleições indefinidas na Venezuela. Primeiramente, gostaria de relembrar as discussões de Marx e Engels com os anarquistas sobre o papel dos líderes. Engels insistiu na importância de os movimentos populares conseguirem respeitar seus líderes, mantê-los e aperfeiçoá-los. A direita estabeleceu mecanismos para defender seus líderes e garantir sua continuidade. De monarquias a regimes parlamentares sob constante ameaça dos partidos socialistas, eles garantiram a permanência e a defesa de seus chefes.

A pretensão dos anarquistas de eliminar líderes e substituí-los por assembleias de massa era claramente um desvio esquerdista com características infantis. Isso não quer dizer que os chefes devam ser glorificados. E aqui está outro ponto pelo qual quero saudá-lo: sua decisão e coragem de submeter a revolução ao pronunciamento das massas populares sempre que necessário. Há muito preconceito contra as massas. Tanto à direita quanto à esquerda do processo político. Uma interpretação errada da declaração de Lênin (por sinal, tirada de Kautsky) sobre o papel da teoria na revolução.

Da mesma forma, sua defesa da organização independente das vanguardas profissionais, especialmente em situações de luta clandestina, foi erroneamente generalizada nos partidos de esquerda. Também devemos criticar a versão liberal dos plebiscitos como instrumentos do autoritarismo fascista. Como todo o instrumento, seu valor é definido pelo fato de ser ou não usado adequadamente. Está claro que um governo revolucionário com o apoio da maioria da população deve recorrer sistematicamente a plebiscitos para derrubar os obstáculos levantados por uma oposição minoritária. A esquerda só conseguiu uma maioria absoluta de votos muito recentemente. Allende, por exemplo, tornou-se presidente com 36% dos votos. E a Unidade Popular alcançou 46% nas eleições parlamentares de 1973, sob uma forte campanha insurrecional da direita. O aumento de seus votos revelou o avanço da revolução, mas demonstrou suas dificuldades.

Camarada : tua decisão de apelar para as massas sem receios é uma característica fundamental da revolução que você está liderando. Sua principal característica é o desenvolvimento colossal da consciência das massas populares sobre o conteúdo das mudanças em andamento e a necessidade de defendê-las. Não deve haver um único momento de hesitação quanto à prontidão revolucionária das massas. Nunca devemos acreditar nesses slogans conservadores sobre o atraso das massas, sobre seus instintos inferiores e outras desqualificações de nossos povos.

Como o senhor pode ver no meu livro sobre a experiência chilena que estou lhe enviando e no qual analiso, em um item do capítulo sobre a revolução latino-americana e o processo chileno, o destino das duas revoluções de 1958 (a venezuelana e a cubana), defendo a tese de que ambos os povos viveram um processo revolucionário democrático nacional. Enquanto Cuba teve de se definir como socialista para levar seu papel revolucionário até as últimas consequências diante das agressões imperialistas, a revolução venezuelana permaneceu nas malhas do capitalismo dependente, apesar de todas as lutas revolucionárias que empreendeu. Entretanto, o limite da revolução significava o limite do processo de democratização e a exclusão das grandes massas socialmente superexploradas do processo político. Isso indicava que o processo revolucionário venezuelano estava truncado e necessariamente tenderia a retornar. A revolução que você preside não é um fenômeno das elites nem uma improvisação histórica. Desde Bolívar até os dias de hoje, nossos povos aspiraram a transformações, tiveram vitórias e muitas derrotas, mas nunca desistiram de seus ideais. O encontro de uma liderança consistente com essa subjetividade histórica que articula tantas experiências é uma situação excepcional que raramente se repete na história.

Os originais do livro que lhe envio, a ser publicado pela editora El Perro y la Rana (esse audacioso projeto do Ministério da Cultura), contêm meus artigos durante o processo chileno. É um testemunho intelectual para a busca de entender e orientar o processo, mas também é um testemunho emocional, um exemplo de paixão revolucionária inspirada em minha formação militante e no acúmulo de experiências anteriores, entre as quais se destacou a brasileira, cujo exílio eu vivia no Chile na época, mas paixão inspirada sobretudo pela força das massas chilenas e sua vontade de lutar, que seus líderes nem sempre interpretaram. Acho que seria bom para você, camarada irmão, comparar muitos dos momentos do processo chileno com o vivido na Venezuela. Cada revolução é um processo único, mas leis gerais podem ser extraídas da experiência de lutas históricas concretas.

Com minhas saudações revolucionárias,


Theotônio dos Santos, Lima, março de 2009.


Um pouco de testemunho pessoal


Lições do Chile: podemos vencer

A comemoração do 30º aniversário do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, liderado pelo General Augusto Pinochet no Chile, provocou uma onda de testemunhos e relatos desse dia trágico. Ao mesmo tempo, trouxe de volta à discussão os aspectos estratégicos e táticos envolvidos em processos socioeconômicos dessa escala histórica. Por esse motivo, decidi preparar em um livro os textos que publiquei durante os dias cruciais do governo da Unidad Popular. Trata-se de um testemunho intelectual de grande importância devido ao intenso debate que ocorreu naqueles dias e ao seu desdobramento atual, quando processos semelhantes estão em andamento.

No que diz respeito ao testemunho pessoal, eu teria muito a contar sobre aquele dia e as circunstâncias que o cercaram. Faz parte do folclore do golpe de Estado o fato de eu ter sido um dos quatro estrangeiros do primeiro grupo de procurados pela junta militar e de ter acabado, depois de dez dias escondido, exilado em minha própria casa.

Na verdade, no dia do golpe de Estado, nós nos trancamos no prédio do Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), cerca de 40 pesquisadores e funcionários administrativos. Evitamos levantar qualquer suspeita de presença no local, pois estávamos entre os mais procurados do país. Como a junta havia estabelecido um toque de recolher, preferimos nos esconder, mantendo um amplo contato telefônico com todo o país. Estávamos registrando de forma impressionante informações das mais variadas fontes que apontavam para o lançamento de uma ampla resistência por parte das forças populares, com o apoio de uma coluna militar vinda do norte e outra de Valparaíso liderada pelo general Prats.

De acordo com esses depoimentos, tudo indicava que o projeto de resistência preparado pela esquerda como um todo estava em andamento. Entretanto, essa era uma construção totalmente imaginária. Na realidade, quem coordenava o plano de resistência a um golpe de Estado era o chefe do Estado-Maior, ou seja, o general Pinochet, que assumiu o comando do golpe. Ele conhecia todos os movimentos de uma possível resistência que estava se tornando inviável.

Os camaradas do Partido Socialista Chileno, ao qual eu pertencia, ao saberem que meu nome estava na primeira lista de procurados da junta militar, prepararam uma operação para me esconder enquanto a resistência podia se organizar. Eles me levaram para o apartamento de uma família pobre. Ele não era nada mais nada menos que um funcionário da penitenciária: um carcereiro. Ele, sua esposa e seu filho de 8 meses viviam em condições extremamente modestas e minha presença, além de ser um fator de pânico psicológico, representava um custo adicional para o qual eu não podia contribuir com nenhum recurso, pois saí do CESO diretamente para sua residência sem nenhum dinheiro. Lá fiquei sem nenhum meio de comunicação, apenas um pequeno rádio a pilha que eles tinham.

Apenas sete dias depois, meus companheiros entraram em contato comigo com notícias sobre minha família e o fracasso da resistência. Eles não podiam garantir a segurança de um estrangeiro procurado como eu. Tive de ser exilado.

A embaixada do Panamá foi o único destino em que os últimos refugiados buscaram abrigo, já que somente no final do dia ela passou a ser vigiada. Por esse motivo, ela foi literalmente assaltada por cerca de trezentos refugiados que tiveram que se contentar com cem metros quadrados de um pequeno apartamento no bairro superior. Diante da ameaça de se tornar um sério problema de saúde, o governo militar foi forçado a permitir que os solicitantes de asilo se mudassem para novas instalações com mais espaço. Esse local era exatamente a casa que eu havia acabado de comprar e para a qual ainda não havia me mudado, que emprestei (sem qualquer remuneração) ao governo panamenho.

José Serra, candidato derrotado à presidência do Brasil em 2002, publicou em 11 de setembro de 2003, no jornal Folha de São Paulo, um extenso artigo sobre o 11 de setembro chileno, no qual faz referência a esse episódio e repete um erro que muitas testemunhas da época cometeram. Ao contrário do que ele escreveu, eu não aluguei minha casa, mas a emprestei gratuitamente à embaixada. É verdade que eu não esperava que ficássemos lá por mais de seis meses. Éramos 9 deferidos, ou seja, aqueles que o governo chileno não permitiu que deixassem o país até que houvesse uma forte pressão internacional. As centenas de solicitantes de asilo que estavam em minha casa saíram uma semana depois, entre eles minha esposa e meus dois filhos, que ficaram alguns meses no Panamá e foram transferidos para o México, onde minha esposa, Vania Bambirra, tinha perspectivas de emprego. Nunca verifiquei a informação publicada na imprensa panamenha de que a embaixada havia "alugado" uma excelente casa para abrigar os exilados. Talvez essa tenha sido a origem da versão de que eu havia alugado a casa.

O fato de essa mesma casa ter sido confiscada, imediatamente após a retirada dos exilados, para se tornar um dos principais centros de tortura do país, foge do marco do 11 de setembro. Esse fato me assombra desde que fiquei sabendo por um dos prisioneiros que foi torturado lá. Também gostaria de ressaltar que José Serra foi quem me levou à embaixada do Panamá para me exilar, entre vários outros brasileiros perseguidos pela junta militar. O fato de hoje estarmos em posições políticas diferentes não me impede de destacar a solidariedade que ele e outros companheiros que tinham a proteção de organizações internacionais demonstraram naquela época. A coragem desses companheiros e de alguns diplomatas foi um dos aspectos positivos que se destacaram em meio à tragédia.


Haveria muito mais a contar, tudo marcado por um profundo sentido humano inerente a esses momentos excepcionais, a essas situações-limite em que o conteúdo emocional e ético das ações humanas é exacerbado e que, então, adquirem um significado simbólico, de modelos e arquétipos que definem os valores da coletividade. Mas eu gostaria de comentar nesta "introdução" alguns aspectos estratégicos e táticos desses eventos que se refletem no debate teórico contemporâneo.

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