“O sorriso de um bolivariano não pode se apagar facilmente”
- grupomonizbandeira
- 24 de mai. de 2021
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Néstor Kohan*

Os disparos e as granadas que encerraram sua existência eram do exército colombiano, tal como a faca e a navalha com que mutilaram sua mão já sem vida. As ordens vieram de Iván Duque, o pombinho apadrinhado pelo il capo da máfia, Álvaro Uribe. Dois lumpens genocidas, igualmente colombianos, encurralados por uma das rebeliões populares mais importantes entre as que vive Colômbia nas últimas décadas.
Porém, que ninguém se engane. Falemos sem eufemismos. A estratégia que guiou esta operação claramente vem de “mais acima”: Estados Unidos e Israel, dois Estados associados que por largos anos dirigem a guerra contrainsurgente em Colômbia. Não de longe, mas com pessoal militar e de inteligência próprios, no mesmo terreno do conflito social mais prolongado de todo o continente. Quando se lê que nos informes de numerosos analistas internacionais que “Colômbia é o Israel da América Latina”, não se está frente a uma metáfora literária. Cada um dos comandantes insurgentes colombianos que foi executado (desde Alfonso Cano e Iván Rios a “Mono” Jojoy, chegando até Jesús Santrich) havia por trás de tal execução um general israelense e tropas norte-americanas de combate. O exército colombiano simplesmente coloca a tropa, como fez há mais de meio século que na execução de Ernesto Che Guevara, fuzilado a sangue frio em La Higuera por mãos bolivianas que apertaram o gatilho, porém dirigidas no mesmo terreno pela inteligência estadunidense. É um segredo de polichinelo. Todo mundo sabe. Está documentado.
Era necessário executar um militante revolucionário cego? Tanto medo tinha o Pentágono norte-americano, o exército israelense e as Forças Armadas colombianas de uma pessoa que não enxergava e se movia com um bastão? Sim, tinham medo. E agora morreu… e vão ter mais ainda, porque o exemplo inquebrantável desse revolucionário comunista certamente ganhará outras dimensões, como ocorreu com Camilo Torres, com Che Guevara e com tantos outros revolucionários e revolucionárias de Nossa América.
Quem foi Jesús Santrich? Difícil defini-lo em poucas linhas. Em primeiro lugar, um militante revolucionário de tempo total. Porém, sua biografia não se resume a isso. Santrich era também um dos grandes pensadores marxistas de Nossa América. Sua produção teórica inclui mais de uma dezena de livros (acessíveis na internet), onde explora desde o romantismo de Karl Marx até o pensamento libertário de Simón Bolivar, passando pelo conhecimento rigoroso da história de incontáveis povos originários, suas culturas, suas cosmovisões e também suas religiões. Porque diferente de alguns “materialistas” esnobes e arrogantes (no fundo simplesmente ignorantes, que por sua preguiça mental jamais tomaram o trabalho de tentar compreender com profundidade os sentimentos e as crenças dos povos que dizem defender), Santrich conhecia na palma das mãos diversas expressões populares de espiritualidade religiosa dos explorados e subjugados do continente.
Contudo, tampouco se esgota aqui seu contorno e sua figura. Sua figura insurgente carregava também uma quantidade incontável de livros de poemas, de desenhos, de canções. Em um dos seus escritos mais sugestivos entrecruzava a biografia de Manuel Maralunda Vélez, líder histórico de sua organização (las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo, Segunda Marquetalia) com Beethoven! Santrich mergulhava com absoluta comodidade na história da filosofia, na literatura, na música e na pintura.
Que político burguês do continente se animou a travar um debate cara a cara com ele? Havia que ter peito para poder discutir e refutar alguém de seu estilo. Nem Duque, nem Uribe, nem Santos poderiam suportar meia hora de polêmica pública, frente a frente, sem guarda-costas, nem pistoleiros ou sicários. Por isso a impotência. Por isso o ódio visceral. Por isso a ordem de persegui-lo e executá-lo. Sabendo que estava cego!
Quem senão um covarde pode assustar-se frente a uma pessoa cega? Isso é Duque. Um covarde. Isso é Uribe. Um covarde. Isso é Santos. Um covarde. Não tiveram força para lidar com seus discursos, com seus sacarmos, com sua ironia.
Sim, ironia. Porque Jesús Santrich cultivava o humor com prazer e deleite, como bom caribenho que se preze. Em um dos últimos vídeos que filmou, os quais viralizaram circulou pelas redes de internet, tocou magistralmente o sax, recitou uma longa poesia em homenagem ao comandante Hugo Chávez (deixando bem claro que a insurgência bolivariana e comunista jamais aceitaria o patrioterismo ignorante santanderista de aldeia, nem a cilada envenenada de criar enfrentamentos entre povos irmãos, como o colombiano e o venezuelano) e rematou sua fala com uma ironia que fazia rir largamente. Se despedia dizendo, se a memória não me falha, “Nos vemos...disse o cego”.
Jesús Santrich ria de si mesmo! Qualquer psicanalista sabia que não há maior gesto de saúde mental que rir de si mesmo. Alguém pôde observar algum Macri rindo de si mesmo? Piñera? Bolsonaro? A ditadorazinha boliviana? Ou Uribe? Ou Duque? Ou o presidente da principal potência ocidental? Ou o primeiro-ministro de Israel? Nunca! Para qualquer um desses personagens de trem fantasma, bizarro e lumpen, o humor seria interpretado como “signo da debilidade”.
Santrich morreu rindo e fazendo piadas! (em seu país o fato de fazer piadas se conhece popularmente como “mamar galos”). Podia rir e contar piadas porque sabia que era forte e sólido. Sua fortaleza não viajava em helicóptero de combate, nem em um tanque de guerra. Vinha da causa justa que defendia, da verdade de seus projetos inspirados em Marx e Bolívar, da nobreza de seus ideais dos quais estava disposto a morrer. Qualquer de seus inimigos em sua situação teria sujado as calças de medo.
O sorriso sarcástico, a ironia feliz, o humanismo à toda prova. Dessa madeira estão feitas as pessoas que não estão atadas a mesquinharias do mercado, as mediocridades da burocracia, ao dinheiro, de suas contas bancárias e seus negócios sujos.
Os Estados Unidos, usando peões locais, decidiu acabar com ele. Que a heroica Revolução Cubana e a Venezuela bolivariana ponham as barbas de molho! O vovô “keynesiano” e “populista” Joe Biden não vêm trazer “diálogo”, “pluralismo”, nem “boa vizinhança”. Vem para tentar salvar, aos murros, um Império em terapia intensiva. Voltará a ter um efeito o sorriso envenenado dos comparsas de Obama? Suas bolsas de estudo? Seus “filantrópicos” convites para visitar “a democracia” de olhos azuis? Seus “estágios acadêmicos” destinados a cooptar gente jovem? Outra vez venderão seus espelhinhos de cor, enquanto continuam semeando e regando as bases militares do continente americano? As organizações populares acreditam, novamente, que com a mudança de administração na casa de paredes brancas renascem por arte da magia John Lennon e Yoko Ono?
A execução impiedosa do comandante Jesús Santrich deixou, tristemente, as coisas às claras. Nada de “flower power”. O imperialismo segue existindo. Nem cegos se podem salvar da fúria descontrolada da contrainsurgência norte-americana, executada em forma cirúrgica por seus peões locais, de pele morena e obediência cega.
Apesar da pandemia e do isolamento social, algo consegue escutar-se entre as plantas e as árvores. Por ali devem andar fazendo piadas e planejando novas insurgências Jesús Santrich e Camilo Torres, Fidel Castro e Marulanda, e Che Guevara, rodeado de jovens rebeldes da Palestina.
O exemplo moral é mais forte do que todo o armamento do mundo. Não se pode aniquilá-lo.
Os povos da América despertaram e já ninguém pode calá-los.
¡Hasta la victoria siempre, querido Trichi, saudoso companheiro Jesús Santrich! E não deixe de tocar o sax, nem a flauta, nunca abandone teus desenhos, teus poemas e nem tuas piadas!
Madrugada de 19 de maio de 2021.
*Néstor Kohan é professor de Filosofia da Universidad de Buenos Aires, coordenador da Cátedra Che Guevara - Colectivo AMAUTA, autor de mais de duas dezenas de livros em torno do marxismo e do pensamento crítico latino-americano.
Tradução: Gustavo Santos
Revisão: Fabricio Gonçalves
Arte: Juan Fischer
Excelente "obituário" que mais nos serve como um "elegíaco" chamado às tarefas urgentes do agora. Kohan nos põe a nú "a incrível fábrica dos chocolates" que retardam e alimentam certos progressismos inférteis.